sábado, 12 de outubro de 2019

Barco sem porto


Barco sem porto




Com cuidado desentrelaçou-se dos braços que a abraçavam, dirigiu-se silenciosamente ao local onde tinha ouvido o telemóvel vibrar, agarrou-o e viu que tinha uma mensagem: 4,3,2 dizia.

Sem hesitar pôs uma camisola de malha sobre o pijama de cetim, calçou uns sapatos velhos e pegou na chave do carro. Saiu de mansinho e sem bater a porta, enquanto descia as escadas do 3.º andar escrevia a resposta: 1,2,3

Aquele código era baseado numa música do Bruno Mars, Count on me, e tinha surgido quando uma vez lhe tinha pedido ajuda e ele tinha dito "conta comigo" e a seguir tinha começado a cantarolar a música.

Desde aí, sempre que um deles precisava de ajuda mandava uma mensagem a dizer 4,3,2 e o outro respondia 1,2,3. Desta vez, tinha no entanto um mau pressentimento, ele andava soturno, triste e cabisbaixo há bastante tempo e quando o questionava sobre o que tinha, a resposta era invariavelmente "nada".

Mas conhecia-o tão bem... Sabia que todos os pequenos sinais que ele tinha vindo a deixar transparecer eram graves. Já lhe tinha pedido o pequeno amuleto feito de componentes electrónicos que tinha oferecido e argumentando que era para o aumentar, uma vez que estava apertado, acabou por o desmanchar todo.

Já lhe tinha pedido todos os cd’s que tinha gravado para ela, argumentando que não tinha ficado com nenhuma cópia, e tinha-se “esquecido” de devolver um só que fosse.

Depois tinha sido o desmantelar do blog onde publicava todos os textos que escrevia: sobre ela, sobre os dois, sobre o que gostava que a vida fosse, enfim...sobre tudo.

O último grande sinal tinha sido a desativação da pequena aplicação informática que tinha idealizado e que enviava invariavelmente todos os dias às 11h11 uma mensagem para o seu telemóvel a dizer: são 11h11 em quem pensavas?

Quando chegou à porta do apartamento, retirou da bolsa castanha, onde guardava as chaves da casa dele, o molho de chaves e subiu apressadamente as escadas. Ao entrar, ouviu música a tocar. Uma das músicas que ele tinha feito para ela, a letra soava “…o que eu queria, era poder um dia, matar este desejo, matá-lo só com um beijo, desses teus…”.

Entrou até à sala, na parede estava projetada, a partir do computador, uma apresentação em powerpoint cujo primeiro slide dizia “Clica-me”.

O ambiente escuro, a música e a necessidade urgente de saber o que ele tinha preparado desta feita, fizeram com que nem reparasse que ele estava sentado num dos sofás imóvel, de olhos fechados, mas com aquele sorriso…

Ao clicar, a imagem de fundo transformou-se numa imensa escadaria até ao céu e a partir daí, não conseguiu tirar os olhos da projecção na parede. Os slides seguiam-se num ritmo cadente e certo ao som das músicas que podiam ser muito bem a banda sonora de uma vida, a vida que nunca tinham tido e pela qual ele tanto tinha lutado.

Pelo meio, agradeceu por tudo o que lhe tinha dado, pediu desculpa por todas as borradas que tinha feito e, de algum modo, foi-se despedindo dela.

As imagens foram mudando cada vez mais lentamente e apenas a imagem de um navio a aproximar-se cada vez mais de um estaleiro, ia ficando nos sucessivos slides. A música abrandou, as frases retiradas de textos escritos ou expressões que ambos costumavam partilhar foram aparecendo a um ritmo cada vez, mais lento. Até… até que o barco encostou no estaleiro… o silêncio repentino e absoluto feria os ouvidos de quem tinha tido um “overload” de sons e músicas nos últimos momentos e com o silêncio apareceu, então, o último slide, onde aparecia escrito em letras bem grandes “Há pessoas que acham que são como barcos em rota de colisão”. De seguida, o ecrã ficou preto e em letras brancas garrafais apareceu escrito “Eu sou apenas um barco sem porto, à espera de ser desmantelado”. Depois, por baixo, em letras bem mais pequeninas, podia ler-se “Encontrei um estaleiro confortável onde é fácil fazê-lo”.

Nessa altura, ela olhou à volta da sala e viu-o assim sentado, aproximou-se para o beijar, e quando encostou a cara à sua, ouviu um som como do martelar de metal, num espaço amplo. Encostou o ouvido direito ao seu peito e ouviu claramente o som de um martelo a bater em metal, sabia o que se estava a passar, deu-lhe um último beijo e saiu.


Refª Musical:                   Count on me – Bruno Mars

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