Barco sem porto
Com
cuidado desentrelaçou-se dos braços que a abraçavam, dirigiu-se silenciosamente
ao local onde tinha ouvido o telemóvel vibrar, agarrou-o e viu que tinha uma
mensagem: 4,3,2 dizia.
Sem
hesitar pôs uma camisola de malha sobre o pijama de cetim, calçou uns sapatos
velhos e pegou na chave do carro. Saiu de mansinho e sem bater a porta,
enquanto descia as escadas do 3.º andar escrevia a resposta: 1,2,3
Aquele
código era baseado numa música do Bruno Mars, Count on me, e tinha surgido
quando uma vez lhe tinha pedido ajuda e ele tinha dito "conta comigo"
e a seguir tinha começado a cantarolar a música.
Desde
aí, sempre que um deles precisava de ajuda mandava uma mensagem a dizer 4,3,2 e
o outro respondia 1,2,3. Desta vez, tinha no entanto um mau pressentimento, ele
andava soturno, triste e cabisbaixo há bastante tempo e quando o questionava
sobre o que tinha, a resposta era invariavelmente "nada".
Mas
conhecia-o tão bem... Sabia que todos os pequenos sinais que ele tinha vindo a
deixar transparecer eram graves. Já lhe tinha pedido o pequeno amuleto feito de
componentes electrónicos que tinha oferecido e argumentando que era para o
aumentar, uma vez que estava apertado, acabou por o desmanchar todo.
Já
lhe tinha pedido todos os cd’s que tinha gravado para ela, argumentando que não
tinha ficado com nenhuma cópia, e tinha-se “esquecido” de devolver um só que
fosse.
Depois
tinha sido o desmantelar do blog onde publicava todos os textos que escrevia:
sobre ela, sobre os dois, sobre o que gostava que a vida fosse, enfim...sobre
tudo.
O
último grande sinal tinha sido a desativação da pequena aplicação informática
que tinha idealizado e que enviava invariavelmente todos os dias às 11h11 uma
mensagem para o seu telemóvel a dizer: são 11h11 em quem pensavas?
Quando
chegou à porta do apartamento, retirou da bolsa castanha, onde guardava as
chaves da casa dele, o molho de chaves e subiu apressadamente as escadas. Ao
entrar, ouviu música a tocar. Uma das músicas que ele tinha feito para ela, a
letra soava “…o que eu queria, era poder um dia, matar este desejo, matá-lo só
com um beijo, desses teus…”.
Entrou
até à sala, na parede estava projetada, a partir do computador, uma apresentação
em powerpoint cujo primeiro slide dizia “Clica-me”.
O
ambiente escuro, a música e a necessidade urgente de saber o que ele tinha
preparado desta feita, fizeram com que nem reparasse que ele estava sentado num
dos sofás imóvel, de olhos fechados, mas com aquele sorriso…
Ao
clicar, a imagem de fundo transformou-se numa imensa escadaria até ao céu e a
partir daí, não conseguiu tirar os olhos da projecção na parede. Os slides
seguiam-se num ritmo cadente e certo ao som das músicas que podiam ser muito
bem a banda sonora de uma vida, a vida que nunca tinham tido e pela qual ele
tanto tinha lutado.
Pelo
meio, agradeceu por tudo o que lhe tinha dado, pediu desculpa por todas as
borradas que tinha feito e, de algum modo, foi-se despedindo dela.
As imagens
foram mudando cada vez mais lentamente e apenas a imagem de um navio a
aproximar-se cada vez mais de um estaleiro, ia ficando nos sucessivos slides. A
música abrandou, as frases retiradas de textos escritos ou expressões que ambos
costumavam partilhar foram aparecendo a um ritmo cada vez, mais lento. Até… até
que o barco encostou no estaleiro… o silêncio repentino e absoluto feria os
ouvidos de quem tinha tido um “overload” de sons e músicas nos últimos momentos
e com o silêncio apareceu, então, o último slide, onde aparecia escrito em letras
bem grandes “Há pessoas que acham que são como barcos em rota de colisão”. De seguida, o ecrã ficou preto e em letras brancas garrafais apareceu escrito “Eu sou
apenas um barco sem porto, à espera de ser desmantelado”. Depois, por baixo, em
letras bem mais pequeninas, podia ler-se “Encontrei um estaleiro
confortável onde é fácil fazê-lo”.
Nessa
altura, ela olhou à volta da sala e viu-o assim sentado, aproximou-se para o beijar,
e quando encostou a cara à sua, ouviu um som como do martelar de metal, num
espaço amplo. Encostou o ouvido direito ao seu peito e ouviu claramente o som
de um martelo a bater em metal, sabia o que se estava a passar, deu-lhe um
último beijo e saiu.
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