Além do mais, este texto joga com algo que sempre me disse muito, este tipo de códigos que se estabelecem entre 2 pessoas que se conhecem tão bem e já têm tantas cumplicidades entre elas que algo que pode parecer absurdo para quem vê de fora, é na realidade uma autêntica linguagem entre elas.
Enfim...aqui fica o resultado em forma de texto e a referência do quanto pode magoar o silêncio, quando é praticado deste modo.
Reconquista-me
Ok! A coisa estava finalmente posta em papel, ou seja,
estava escrito. Era um pequeno texto, talvez um pequeno poema para ela
Reconquista-me
como me conquistaste da primeira vez
com esse teu ver como só tu me vês,
com esse desejar que queima e cura
com esse corpo de mulher madura
reconquista-me
hoje, amanha, todos os dias
para nos poupares à agonia
de um dia me quereres reconquistar
e ser tarde demais, por eu já não estar
e se não me reconquistas
por favor não te afastes sem nada dizer
o teu silêncio mata, e eu não quero morrer
deixa-me ser eu a reconquistar-te a ti
por favor não te afastes, fica aqui
Agora restava fazer a sua “magia”. Pegou no Expresso desse
fim-de-semana e começou a vasculhar no jornal todo, à procura de cada palavra.
Com uma rapidez incrível lá ia escrevendo:
P23,L2,14 – P1,L73,6
P33,L64,14 P1,L73,6
P1,L44,7 P21,L14,4 P34,L……
Era assim que mandava mensagens à sua amada, e era assim que
ela lhe respondia, nesta espécie de código, em que cada palavra da mensagem era
retirada das folhas de um jornal, neste caso, por exemplo, na vigésima terceira
página do jornal, segunda linha, encontrava-se na décima quarta palavra um
“Reconquista”, na primeira página na septuagésima terceira linha a sexta
palavra era “Me”, e por aí adiante. Era uma espécie de puzzle que tinha
começado a fazer, sempre que lhe queria dizer qualquer coisa importante.
Enquanto procurava cada palavra, relembrava a primeira vez
que tinha utilizado este modo de comunicação e lhe tinha entregue o Correio da
manhã desse dia, e lhe tinha escrito o código
P46,L2,4
P1,L78,6 P1,L2,3 P32,L17,8
para ela decifrar. Na realidade a mensagem era GOSTO MUITO
DE TI. Ela não foi capaz de deslindar o código, mas depois de “perder” uma
tarde a aprender como traduzir aquelas mensagens, tornou-se também uma perita
nesse tipo de código, e utilizavam-no muitas vezes quando combinavam coisas em
conjunto, ou queriam dizer algo um ao outro. Enfim…era uma brincadeira, mas que
lhes dava muito gozo.
Relembrou também o primeiro encontro no parque de
estacionamento, combinado usando o jornal que estava em cima da mesa onde
bebiam café durante a “break” que faziam a meio do dia de trabalho. As saídas
combinadas sem ninguém saber, as cumplicidades que se iam somando entre eles,
as histórias que viviam juntos. Relembrou a primeira vez…, o sofá…, o modo como
a segurou, como a fez voar, a montanha russa, tudo…
Todas estas memórias boas foram passando pelos seus olhos
como se as revivesse neste preciso momento. Mas a seguir veio o período de
memórias menos boas, o declínio da loucura que em tempos tinham sentido um pelo
outro, os desentendimentos que tinham tido, sobretudo, por ela quase sempre ficar
sem dar uma resposta, ou ter uma postura neutra e nada dizer, calando-se quando
ele a questionava sobre o que sentia ou o que se passava. Por isso, queria
reconquistá-la e para isso tinha feito um pequeno poema que agora estava a
terminar de “codificar” para depois poder entregar à sua amada.
Terminada a tarefa, colou o papel na primeira página do
jornal e foi a correr entregar-lho. Ela recebeu o jornal com um sorriso
indiferente e segurando o papel fez menção de começar a descodificar, ao que
ele lhe sugeriu que lesse em casa e depois respondesse da mesma forma
codificada como ele tinha feito.
Esperou pelo dia seguinte com a expectativa típica de um
adolescente que espera a resposta ao “Queres namorar comigo?” dito, pela
primeira vez, nos corredores do liceu. Quando finalmente a encontrou à mesa do
café, reparou que ela trazia o jornal, provavelmente com a resposta. Ficou
ansioso e quando ela lhe entregou o jornal com o papel de resposta colado na
primeira página, não pôde deixar de espreitar a mensagem de resposta, que
afinal era apenas uma palavra.
P33
Pensou logo que ela se teria esquecido de colocar a linha e
a palavra que queria usar, mas quando fez menção de a alertar para o facto, ela
disse para ele descodificar apenas em casa e, com alguma indiferença, levantou-se, saindo de volta para o trabalho.
Sem pensar muito no que se teria passado, e estranhando a
postura da rapariga, foi a correr à página trinta e três pensando que talvez
conseguisse localizar a palavra que ela queria usar, o que ela lhe teria para
dizer.
Quando passou a trigésima segunda página e viu a página
seguinte, ficou estático e percebeu finalmente o que ela queria dizer. Sem
reacção largou o jornal em cima da mesa, saiu dali e foi até à entrada do
prédio onde se situava o escritório onde trabalhavam.
Sem pressas, caminhou direito à estrada e quando o primeiro
carro que ia a passar passou, ele avançou!
Sentados à mesa do café estavam dois colegas recém-chegados para a sua pausa, e ao folhear o jornal, ainda aberto sobre a mesa, comentaram
a estranheza da edição daquele dia ter uma folha em branco. De facto,
provavelmente por erro de impressão, a página 33 estava completamente branca,
nada….
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