quarta-feira, 8 de abril de 2020

Reconquista-me

Quando fiz a emissão sobre o silêncio, havia já um texto que se adequava muito bem a esse programa, quer pelo facto de haver uma música na playlist que era a mesma que me tinha "inspirado" a escrever este "Reconquista-me" (Away In Silence dos Creed), quer pelo facto de achar que, algumas vezes, o silêncio que algumas pessoas fazem, não expressando o que sentem e, cautelosamente, não se expondo, acaba por ser uma arma que, muitas vezes, é suficiente para acabar com a vitalidade de um relacionamento, seja ele de que tipo for. Nunca o cheguei a colocar aqui antes, na esperança que houvesse mais alguém a quem o silêncio tivesse tocado profundamente. Chegou a hora!!!
Além do mais, este texto joga com algo que sempre me disse muito, este tipo de códigos que se estabelecem entre 2 pessoas que se conhecem tão bem e já têm tantas cumplicidades entre elas que algo que pode parecer absurdo para quem vê de fora, é na realidade uma autêntica linguagem entre elas.
Enfim...aqui fica o resultado em forma de texto e a referência do quanto pode magoar o silêncio, quando é praticado deste modo.




Reconquista-me



Ok! A coisa estava finalmente posta em papel, ou seja, estava escrito. Era um pequeno texto, talvez um pequeno poema para ela

Reconquista-me
como me conquistaste da primeira vez
com esse teu ver como só tu me vês,
com esse desejar que queima e cura
com esse corpo de mulher madura

reconquista-me
hoje, amanha, todos os dias
para nos poupares à agonia
de um dia me quereres reconquistar
e ser tarde demais, por eu já não estar

e se não me reconquistas
por favor não te afastes sem nada dizer
o teu silêncio mata, e eu não quero morrer
deixa-me ser eu a reconquistar-te a ti
por favor não te afastes, fica aqui

Agora restava fazer a sua “magia”. Pegou no Expresso desse fim-de-semana e começou a vasculhar no jornal todo, à procura de cada palavra. Com uma rapidez incrível lá ia escrevendo:

P23,L2,14 – P1,L73,6
P33,L64,14   P1,L73,6    P1,L44,7   P21,L14,4   P34,L……

Era assim que mandava mensagens à sua amada, e era assim que ela lhe respondia, nesta espécie de código, em que cada palavra da mensagem era retirada das folhas de um jornal, neste caso, por exemplo, na vigésima terceira página do jornal, segunda linha, encontrava-se na décima quarta palavra um “Reconquista”, na primeira página na septuagésima terceira linha a sexta palavra era “Me”, e por aí adiante. Era uma espécie de puzzle que tinha começado a fazer, sempre que lhe queria dizer qualquer coisa importante.
Enquanto procurava cada palavra, relembrava a primeira vez que tinha utilizado este modo de comunicação e lhe tinha entregue o Correio da manhã desse dia, e lhe tinha escrito o código
P46,L2,4   P1,L78,6     P1,L2,3   P32,L17,8
para ela decifrar. Na realidade a mensagem era GOSTO MUITO DE TI. Ela não foi capaz de deslindar o código, mas depois de “perder” uma tarde a aprender como traduzir aquelas mensagens, tornou-se também uma perita nesse tipo de código, e utilizavam-no muitas vezes quando combinavam coisas em conjunto, ou queriam dizer algo um ao outro. Enfim…era uma brincadeira, mas que lhes dava muito gozo.
Relembrou também o primeiro encontro no parque de estacionamento, combinado usando o jornal que estava em cima da mesa onde bebiam café durante a “break” que faziam a meio do dia de trabalho. As saídas combinadas sem ninguém saber, as cumplicidades que se iam somando entre eles, as histórias que viviam juntos. Relembrou a primeira vez…, o sofá…, o modo como a segurou, como a fez voar, a montanha russa, tudo…
Todas estas memórias boas foram passando pelos seus olhos como se as revivesse neste preciso momento. Mas a seguir veio o período de memórias menos boas, o declínio da loucura que em tempos tinham sentido um pelo outro, os desentendimentos que tinham tido, sobretudo, por ela quase sempre ficar sem dar uma resposta, ou ter uma postura neutra e nada dizer, calando-se quando ele a questionava sobre o que sentia ou o que se passava. Por isso, queria reconquistá-la e para isso tinha feito um pequeno poema que agora estava a terminar de “codificar” para depois poder entregar à sua amada.

Terminada a tarefa, colou o papel na primeira página do jornal e foi a correr entregar-lho. Ela recebeu o jornal com um sorriso indiferente e segurando o papel fez menção de começar a descodificar, ao que ele lhe sugeriu que lesse em casa e depois respondesse da mesma forma codificada como ele tinha feito.
Esperou pelo dia seguinte com a expectativa típica de um adolescente que espera a resposta ao “Queres namorar comigo?” dito, pela primeira vez, nos corredores do liceu. Quando finalmente a encontrou à mesa do café, reparou que ela trazia o jornal, provavelmente com a resposta. Ficou ansioso e quando ela lhe entregou o jornal com o papel de resposta colado na primeira página, não pôde deixar de espreitar a mensagem de resposta, que afinal era apenas uma palavra.
P33
Pensou logo que ela se teria esquecido de colocar a linha e a palavra que queria usar, mas quando fez menção de a alertar para o facto, ela disse para ele descodificar apenas em casa e, com alguma indiferença, levantou-se, saindo de volta para o trabalho.
Sem pensar muito no que se teria passado, e estranhando a postura da rapariga, foi a correr à página trinta e três pensando que talvez conseguisse localizar a palavra que ela queria usar, o que ela lhe teria para dizer.
Quando passou a trigésima segunda página e viu a página seguinte, ficou estático e percebeu finalmente o que ela queria dizer. Sem reacção largou o jornal em cima da mesa, saiu dali e foi até à entrada do prédio onde se situava o escritório onde trabalhavam.
Sem pressas, caminhou direito à estrada e quando o primeiro carro que ia a passar passou, ele avançou!
Sentados à mesa do café estavam dois colegas recém-chegados para a sua pausa, e ao folhear o jornal, ainda aberto sobre a mesa, comentaram a estranheza da edição daquele dia ter uma folha em branco. De facto, provavelmente por erro de impressão, a página 33 estava completamente branca, nada….


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